CABO VERDE. Claridade
Palavras sobre, Cabo Verde
Para ser em lidas no Brasil (ESPECIAL) *
Por OSÓRIO DE OLIVEIRA Escritor e jornalista
NÃO quero falar da paisagem de Cabo Verde. Conheço o interior de Sant'Iago mas nunca vi a Brava, o Fogo, o interior de São Nicolau ou de Santo Antão, precisamente os pontos onde não é tão trágica a nudez da paisagem. Antes queria que fosse mais suave a minha visão dessa terra, mas tiro alguma vantagem de ter sempre presente o quadro dramático da natureza na ilha de São Vicente, para não falar do que rodeia a Cidade de Praia, das ilhas de areia que são o Maio, a Boavista e o Sal, e do aspecto terrível das costas rochosas de São Nicolau e de Santo Antão. Como o contraste entre a agressividade do solo e a doçura da população é maior em São Vicente do que em nenhum outro ponto do arquipélago, posso admirar mais profundamente a alma crioula.
O cabo-verdiano - já o escrevi - é, sem dúvida, a grande, a única riqueza de Cabo Verde. E se a natureza ingrata, à força de o perseguir, lhe tira as qualidades mais apreciadas no mundo pragmático de boje, não pensem os homens do progresso que o cabo-verdiano lhes é inferior. O homem dessas ilhas tão cruelmente tratadas pelo Destino tem todas as virtudes da inteligência, do sentimento e da sensibilidade.
A percentagem de analfabetos, muito inferior à das populações metropolitanas, chega a ser insignificante, quási inexistente mesmo. A sêde de aprender é extraordinária nos cabo-verdianos. Nenhum espectaculo tão comovente como uma escola de instrução primária que vi numa povoação do interior de Sant'Iago. Numa casa acanhada comprimiam-se dezenas de crianças descalças e mal vestidas, que muitas vezes não comiam o necessário, filho de gente quasi miserável duma terra periodicamente flagelada pela seca. Nos olhos desses crianças havia, porém, uma chama de vivacidade intelectual que iluminava a sala pobríssima da aula. O professor informou-nos que, se mais pudesse receber, mais alunos teria, pois o cabo-verdiano pode não ter de comer mas nunca deixa de estudar por sua vontade, E note-se que o habitante de Sant'Iago é o de menor desenvolvimento intelectual, por ser• mais puramente africano por ser menor na ilha a obra de miscegenação, por aí ainda influir o "éthos" da Africa negra.
Moralmente, o cabo-verdiano é movido pelos seus sentimentos afectivos de grande amorosidade pela mulher, pela família e pela terra. Mêsmo quando emigra nunca esquece as suas ilhas, a elas voltando sempre que pode, embora êsse regresso represente tambem a. volta à vida sem conforto. A sua personalidade emotiva o permite que se torne, nos Estados Unidos, um norte-americano. Nessa personalidade está o segredo da resistencia da sua alma, mas no que faz a sua virtude vamos encontrar o motivo da sua fraqueza. Amoroso como é, e duma amorosidade ao mesmo tempo sensual e lírica, o cabo-verdiano tem uma grande doçura de temperamento. Ora essa doçura faz dele um nostálgico, um melancólico e um resignado. Resignação é a palavra que define a sua atitude, a enérgica reacção dos fortes e a ersistencia tenaz no esforço necessário. um dos novospoetas de Cabo Verde, Manuel Lopes,
num poema cruciante em que evoca o Mundo que, isolado no meio do Oceano, os seus olhos "sorvem nos jornais e revistas atrasadas'', depois de descrever o tumulto das cidades dinâmicas, trepidantes, diz melancolicamente:
'·- que aqui nada disto existe: é tudo resignação".
Mas é, precisamente, essa resignação que os cabo-verdianos cultos precisam de combater no seu povo. Bem sei que a luta do homem de Cabo Verde com a inclemência do clima é um trabalho de Sisifo**. Mas se eu pudesse, iria de ilha em ilha, de povoação em povoação, de casa em casa, dizer aos cabo-verdianos que não se resignassem. Há muitas coisas que eles podiam conseguir se, em vez de se curvarem sob o Destino implacável, gritassem a sua vontade desesperada de viver.
Falei dum jovem poeta de Cabo Verde.
Quero dizer aos brasileiros que escutarem estas palavras que em Cabo Verde existe um grudo de poetas e de prosadores que só por si justifica toda a simpatia por aquelas ilhas perdidas no Atlântico. Porque quero dizer isso especialmente aos brasileiros? O alto nível mental dos cabo-verdianos é, há muito, uma das maiores provas da excelência da colonização , portuguesa e da nossa capacidade civilizadora. Mas os Cabo-Verdianos, até há pouco, se tinham talento literário aproveitavam-no cantando a Itália, como Henrique de Vasconcelos. que foi um artista da prosa, sem se importarem com a tragédia do seu povo e a alma da sua terra. Hoje, para sua desgraça pessoal mas para bem de Cabo Verde e sua glória de escritores, residem nas ilhas alguns rapazes de talento. Modestos funcionários ou empregados, não podem vir para portugal como os homens felizes das outras gerações. Outra felicidade maior que o gôso da existência encontram, por isso, na descoberta da sua própria terra. As suas obras terão, por isso. outro valor, outro sentido humano muito mais alto que as de todos os outros literatos cabo-verdianos, se exceptuarmos o poeta de língua crioula Eugénio Tavares.
Mas não foi só por viverem no arquipélago que êsses novos literatos descobriram a sua terra e a cantam com tanta liberdade de ritmos e de expressões e com tão profunda humanidade. os caboverd1anos precisavam dum exemplo que a literatura de Portugal não lhes podia dar mas que o Brasil lhes forneceu. As afinidades existentes entre Cabo Verde e os estados do Nordeste do Brasil predispunham os caboverdianos para compreender, sentir e amar a nova literatura brasileira. Encontrando exemplos a seguir na poesia e nos romances modernos do Brasil, sentindo-se apoiado, na análise do seu caso, pe1os novos ensaístas brasileiros, os caboverdianos descobriram o seu caminho.
Um grupo se formou com o nome de "Claridade", tendo por emblema um mastro de sinais. o mastro do fortim de São Vicente, com as bandeiras que querem dizer: "demanda o pôrto". Tenho a firme certeza disto e os seus livros, hão-de entrar no pôrto trazendo a sua mensagem. Que os brasileiros de que êsse grupo de jovens, com a sua reviros a recebam como se irmãos seus a subscrevessem, porque como irmãos os consideram os cabo-verdianos. E que nós, portuguêses do Continente, saibamos vêr nésse entendimento de brasileiros e de Cabo-Verdianos a melhor prova da universalidade da nossa acção espiritual, nossa glória eterna
Lisbôa, 29 de Março de 1936.
Ass. Osório de Oliveira
*In. Boletim da Sociedade Luso- Africana do Rio de Janeiro
**Sisifo - (Mitómino grego, filho do Rei Eolo, da Tessália) Pessoa que tem tarefa ou trabalho que implica um esforço rotineiro e interminável, não sendo produtivo.
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